sábado, 19 de junho de 2010



POEMA À BOCA FECHADA

Não direi:
que o silêncio me sufoca e me amordaça
calado estou, calado ficarei,
pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam
se represam, cisterna de águas mortas
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
no negro poço de onde sobem dedos

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago
(1922-2010)
R.I.P

OPINIÃO DE TIAGO MOITA: Ontem não morreu só um escritor, apenas se apagou uma estrela lírica que iluminou o coração de milhares e milhares de escritores não só em Portugal mas em todo o mundo. Não só a sua vastíssima obra e os prémios que ganhou ao longo da sua carreira o tornaram num escritor universal mas, principalmente a forma como libertou a palavra e emancipou a linguagem do romance, o percurso de um homem do povo que trabalhou a vida a pulso, trabalhou inúmeras profissões e combateu injustiças durante toda a sua vida, Fizeram de Saramago não só um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, como um exemplo de ser humano capaz de ultrapassar as fronteiras do seu corpo e alma pela arte.

Para ti Saramago, nunca te direi adeus...apenas...até breve.