quarta-feira, 10 de junho de 2015

POEMA "LAMENTO PELA LÍNGUA PORTUGUESA" DE VASCO GRAÇA MOURA"


"LAMENTO PELA LÍNGUA PORTUGUESA"

Não és mais do que as outras, mas és
nossa,
e crescemos em ti. Nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insonssa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.

Mas é o teu país que te destroça
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.

Mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.

Talvez seja o processo e o desnorte
que mostra como é a realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida da cidade.

Mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força de vontade
e tão filosofais melancolias 
nessa escusada busca da verdade, 
e que a ti nos prendesse melhor grade.

Bem que ao longo do tempo
ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais
e entre gentes remotas descobririas
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.

Matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão,
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.

E toda a gente o diz, mesmo essa que
anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que o vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.

Foste memória, música e matriz
de um áspero combate: aprender
a dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações, 
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.

Agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.

De assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam 
triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito,
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste nas tuas próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.

Não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. Nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
por-te incolor, inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
Enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.

Mas com o que te resta me iluminas.

VASCO GRAÇA MOURA
(1942-2014)
"Antologia dos Sessenta Anos"

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