quarta-feira, 10 de junho de 2015

POEMA "PORTUGAL" DE ALEXANDRE O'NEILL


"PORTUGAL"

Ó Portugal, se fosses apenas três sílabas
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal, 
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses a carrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses apenas três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiras da Golegã,
não há "papo-de-anjo que seja do meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para meu devaneio, 
bandarilha que possa enfeitar o meu cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

ALEXANDRE O'NEILL
(1924-1986)
"Feira Cabisbaixa"
1965

    

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