terça-feira, 9 de outubro de 2007
LEMBRAR EUGÉNIO DE ANDRADE
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos,
como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Diz homem,
diz criança,
diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.
É na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
Música, levai-me:
Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?
Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila,
a boca espera
(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)
espera o ardor
do vento
para ser ave,
e cantar.
Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser
se a luz é tanta,como se pode morrer?
Sê tu a palavra
1.Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
2.Só o desejo é matinal.
3.Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
4.Morre
de ter ousado
a água amar o fogo.
5.Beber-te a sede e partir
– eu sou de tão longe.
6.Da chama à espada
o caminho é solitário.
7.Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
Colhe todo o oiro
Colhe
todo o oiro do diana haste mais alta
da melancolia.
Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.
Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?
Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargurados meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum
De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.
Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.
(Vontade de ser barco ou de cantar.)
Sê paciente;
espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
À breve,
azul cantilena
dos teus olhos quando anoitecem.
Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar:
doçura
e ardor nos olhos fatigados.
A raiz do linho
foi meu alimento,
foi o meu tormento.
Mas então cantava.
Às vezes tu dizias:
os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco,
mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo:
meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto,
antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus
Eugénio de andrade (1923 - 2005)
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