quinta-feira, 15 de março de 2007

"E A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL" - UM CONTO DE SARA F.COSTA


"E A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL"


Nota da autora do conto: O actual texto é puramente fictício assim como a existência de do país "Gronos". As eventuais referências a figuras públicas, produtos ou serviços não pretendem desacreditar qualquer companhia ou entidade.


"Em Portugal, nada acontece, "não há drama, tudo é intriga e trama".

Escreveu alguém num grafitti ao longo da parede de uma escadaria de Santa 

Catarina que desce para o elevador da Bica."

José Gil em "Portugal, Hoje: o Medo de Existir"


Só ao quarto abraço consecutivo é que Ana reparou nas pontas espigadas do comprido cabelo pintado da mãe. Esteve quase para comunicar esse reparo, mas depois pensou que talvez não fosse muito importante. Ela iria dar por ela de qualquer maneira. No limite da situação, viu a irmã como refúgio. A irmã iria alertar a mãe quanto aos cabelos espigados.

Foi com esse reconfortante pensamento que disse o último "Eu telefono!" e entrou no táxi que a levaria ao aeroporto.

Pelo caminho reparou numa publicidade muito gira que dizia que as pessoas com personalidade forte compravam um BMW Z3. Ela gostou de ler porque era essa precisamente a marca do carro dela. E ele gostava que lhe dissessem que possuía uma personalidade forte.

Mais à frente, um enorme placar publicitário apelava à mudança de vida - “Mude a sua vida para melhor!” aparecia em letras garrafais - e um homem com bom aspecto, de fato e gravata, ostentava uma garrafa de champanhe Christine Van Der Hard numa limusina entre duas mulheres vestidas com um glamour exagerado, enfiadas em vestidos possivelmente Gucci (por causa do corte). 

A vida de Ana sempre correu dentro da normalidade - dentro dos trilhos que ela definia como normalidade - e isso deixava-a satisfeita. Tirou a licenciatura de gestão nos quatro anos previstos e tem já um cargo administrativo numa empresa (a do pai). Trata-se de uma empresa de produções audiovisuais. Receberam uma encomenda de uma estação televisiva privada que pretende a realização de uma série semelhante a uma que passa num país chamado Gronos, onde alcança um sucesso extraordinário. 78% de share. Algo mítico, utópico para um país como o de Ana. Assim, Ana dirige-se a Gronos a fim de estabelecer contacto com os autores da aclamada série e tratar das negociações referentes aos direitos de reprodução.

 Não conhecia de lado nenhum o país para onde iria passar o próximo ano em trabalho. Sabia apenas que era um país pequeniníssimo situado numa ilha. Era uma espécie de país-cidade. Quando lhe falaram pela primeira vez em viajar para Gronos lembrou-se de ter visto há uns tempos uma notícia na televisão sobre tal país. O jornalista relatava uma nova forma de manifestação artística provinda de lá que consistia numa exteriorização interventiva na paisagem, uma espécie de Land Art mas sem a obrigatoriedade do carácter ecológico e consequentemente efémero. Os artistas faziam propostas para determinado espaço e caso fossem aprovadas tinham a ajuda do estado para a execução. Um jornalista entrevistou o ministro da cultura desse país e questionou-o acerca daquela prioridade dada ao plano artístico, ao que este respondeu “A arte sempre foi isto - interrogação pura, questão retórica sem a retórica - embora se diga que aparece pela realidade social”. Claro que esta notícia só passou depois das 21h, depois do homem que matou o vizinho a tiro, dos mortos no Iraque e dos conflitos inter e intra partidários.

O avião em que seguia não era dos melhores. Tratava-se de uma companhia classificada como média em termos da qualidade do serviço. Contudo, era a única que disponibilizava aviões para Gronos naquele dia e àquela hora. Ana não teve outra hipótese. O avião era pequeno e inestético. Amarelo berrante com azul-escuro. As empregadas também eram ligeiramente antipáticas apesar de que uma delas, a brasileira, até estava bem apresentada com blusa e saia Animale, sandálias Corello, um anel Luiz Carlos Okubo, brincos Natan, colar Renner, cabelo com tintura da Cats Hair e nitidamente maquilhada com produtos da VenVert. Contudo, era visível que não executavam limpezas entre voos. Havia guardanapos e pacotes de sumo debaixo dos bancos. Mas o mais inaceitável eram os bancos todos riscados na parte de trás. Alguns com canetas de feltro, outros simplesmente com chaves ou moedas. Nas costas do banco imediatamente à sua frente, Ana conseguia ler nitidamente “O homem é a criatura que, para afirmar o seu ser e a sua diferença, nega”. Absolutamente asqueroso, pensou. Entretanto abstraiu-se da imundice do avião e recostou-se no seu lugar a ouvir o último álbum dos U2 no novo telemóvel Nokia N90 Imaging Smartphone com um adaptador leitor de mp3 IRIVER PMP120 de 30 Gb. O livro da Margarida Rebelo Pinto também ajudou a passar o tempo. 

Estava Ana a ler a descrição da saia Miguel Vieira de uma personagem que acabava de surgir na trama quando o avião se preparava para aterrar. 




Apanhado um táxi para o apartamento que lhe tinha destinado a empresa, a acomodação foi fácil e o apartamento alugado continha um refinamento muito próprio, exótico, delicado. Contudo, Ana não conseguiu saber de quantas estrelas era o hotel, visto que em Gronos não fazem esse tipo de diferenciação. Assim que se viu instalada, telefonou ao namorado, Marco. Ele está a tirar um mestrado em ciências económicas. Frequenta o ensino universitário há cerca de doze anos. O pai é dono de uma grande empresa de equipamento. “O Marco é riquíssimo e giríssimo”, pensa Ana para si com frequente regozijo. Não o diz às amigas como seria sua vontade, prefere conter-se porque sabe que isso iria fazê-la parecer uma pessoa excessivamente frívola. Recorda-se perfeitamente da noite em que o conheceu naquela distinta discoteca com o seu Smoking, € 673.86. Camisa, € 373.00. Laço, € 235.00. Botões de punho, € 470.00. Tudo Rosa & Teixeira. Botins, D&G na My God € 629.00. Tudo perfeitamente impecável e ele falava acerca dos seus pequenos projectos. 

Ana telefona-lhe. 

- Olá ‘mor! 
Olá Aninha! 
- Era só para te dizer que cheguei bem, já estou instalada… 
- Ah, óptimo! - E tu, como estás? 
- Estou bom… 

- Que estavas a fazer? 
- Oh, nada de especial… Estava a ver um catálogo de centros de bronzeamento com vista panorâmica… então e o hotel aí, é bom? 
- O ambiente é agradável… mas não sei como serão os serviços… não me parece um hotel muito convencional… 
- Também não é muito tempo, pois não? 
- Não… - Olha, querida, agora vou ter de desligar que o Carlos vem-me buscar para irmos ao ginásio… beijinhos! 
- Está bem, ‘mor. Telefona-me! 



Quando desligou o telefone, Ana apercebeu-se da falta de algo no quarto. Uma falta causadora de um vazio inefável. Durante uns minutos moveu-se dentro daquela sensação desguarnecida sem conseguir identificar o motivo gerador daquele abafo. Até que se apercebeu: não havia espelhos naquele quarto.

Foi com um pequenino espelho existente no kit de maquilhagem que Ana conseguiu ornamentar os olhos com o eye liner Carolina Herrera e sombra Giorgio Armani assim como o rímel Lancôme. Dessa forma pôde dirigir-se tranquila e segura para o jantar com os produtores da tal série. O restaurante não ficava longe do hotel. O recepcionista, um homem com feições orientais e voz áspera mas muito solícito, tinha-lhe dado as instruções claras para encontrar o restaurante sem equívocos.

Foi ao caminhar ao longo das pacatas ruas de Gronos que Ana começou a antever indícios de uma ambiência cultural absolutamente distinta daquela de onde veio. As filas de casas pelas quais passou possuíam uma arquitectura peculiar e tinham todo um toque de singularidade apesar da nítida preocupação urbanística que as tornava harmoniosas na sua concepção unitária. Pelo caminho passou por um homem que apesar do aspecto normal, remexia num caixote do lixo. Ana considerou aquela situação asquerosa e dirigiu-se ao homem: 

- Do que é que você anda aí à procura? – Perguntou Ana com um polvilho de indignação na voz. Ao que o homem respondeu: 
- Ando à procura do sentido da vida menina… 

Aquela gente não era normal, pensava Ana com a sua Camisa em chiffon com fitas de seda, € 495.00, Alessandro Dell Acqua e Calças de smoking, € 432.00, Gianfranco Ferré. Tudo na Loja das Meias. Anéis em topázio e pérolas, € 2244.00, Mimi. Quase tudo presentes do Marco. Ignorando o homem, prosseguiu até encontrar o restaurante. 

Ficou bastante vacilante em entrar. Mas as cortinas de palha aparentemente suspeitas, escondiam uma ambiência cujo primor era inegável. A decoração era extravagante mas apelava à depuração, à mansidão. Quase tudo vidros que tapavam pinturas abstractas. Vidro a cobrir pinturas abstractas no chão. Vidro a cobrir pinturas abstractas nas paredes. Vidro a cobrir pinturas abstractas no tecto. Mas tudo conjugado numa harmonia envolvente. E Ana, que até nem gostava nada de arte abstracta, não desgostou. Contudo, estavam poucas mesas ocupadas àquela hora e não lhe pareceu ver ninguém que correspondesse à descrição que trazia dos produtores com quem iria estabelecer contacto. Assim, aproveitou para ir à casa de banho. 

A casa de banho não destoava do resto do restaurante em termos decorativos. E, pela primeira vez em Gronos, um espelho! Ana pôde assim colocar-se em várias posições e apreciar a sua figura. Era de perfil que ela conseguia verificar melhor a forma como a roupa estava assente no corpo. Algumas peças precisavam de ser reajustadas com deslocações suaves. Entretanto, dirigiu-se a um cubículo possuidor de sanita a fim de satisfazer necessidades fisiológicas. Dentro do cubículo apercebeu-se da entrada de duas raparigas na casa de banho e inevitavelmente ouviu a conversa que mantinham entre si.

- Que estás a fazer? – Pergunta uma voz de timbre áspero. 
- Estou a ver-me ao espelho. - Responde uma voz aguda e melódica. 
- Até que ponto achas que ele retribui a tua imagem? 
- Não entres em problematizações grotescas. É óbvio que retribui a minha imagem porque existe luz e o espelho se trata de uma superfície reflectora. 
- Ah, não, mas a questão é… Será que a imagem que tu vês de ti é a que os outros vêem? No sentido em que perante um espelho geras uma situação dominada pelo articialismo, uma situação de isolamento… Tu não te vês inserida em determinado contexto, vês-te com a ânsia de te veres e não espontaneamente. Até que ponto a visão de ti que ele te dá pode ser fiel? 

Ouve-se a porta a abrir. Entra um terceiro elemento. Ana puxa as calças, sai do cubículo e dirige-se para o lavatório no intuito de lavar as mãos. O terceiro elemento é uma senhora gorducha com o cabelo laranja e a roupa verde alface. Dirige-se para o cubículo. As raparigas são elegantes, usam roupas suaves, têm compridas rastas aloiradas e Ana procura perceber se estarão pedradas. Mas não consegue. A conversa entre as duas prossegue. A rapariga de voz melódica é a mais baixa.

- Estou a ver o teu ponto de vista… No fundo o que queres dizer é que a imagem se altera em função de um encadeamento. A imagem insere-se em ocasiões. As ocasiões são-nos exteriores e consequentemente incontroláveis. O espelho reflecte uma porção daquilo que somos ou viremos a ser, dá-nos um indício, uma impressão… mas nunca a verdade. 

A mulher de verde alface sai da casa de banho. Dirige-se às raparigas enquanto carrega num botão de onde extrai sabonete líquido. Aparentemente não se conhecem.

- Então, mas vamos lá ver, uma só imagem não pode sofrer variações assim tão acentuadas mesmo estando inscrita em contextos diversos… 
- Pois não – responde a rapariga de voz monocórdica – contudo, não é só esse o factor das intercorrências. Há uma margem de autonomia dada à subjectividade do sujeito. 
- Sempre a subjectividade! – Lamenta-se a senhora. 
- É verdade, minha senhora, é verdade! – Assina a voz áspera. 

A senhora sai da casa de banho. Ana faz o mesmo com a sensação de que o entendimento de alguma coisa lhe escapou. Ao sair da casa de banho Ana conseguiu discernir dois homens no canto superior esquerdo do restaurante que se enquadravam no registo mental que possuía do que lhe tinham descrito. Um homem com os seus setenta e tais, careca no centro da cabeça, uma barba descuidada a cair por todos os limites da cara fumava um cachimbo que parecia ter sido trabalhado artesanalmente. Estava descontraidamente a observar a estranha pintura abstracta (com muitos riscos, manchas e assim) que se encontrava imediatamente à sua frente. O outro rapaz era mais jovem, nos seus trinta e poucos. Não tinha barba, não tinha careca. Um corte corriqueiro adornava-lhe a face enxurrada de uma jovialidade enjoativa. A camisa azul clara com riscas ligeiramente mais claras, ficava-lhe minimamente decente apesar de se perceber nitidamente que a roupa não era de nenhum estilista.

Ana aproximou-se da mesa daquelas duas personagens.
- Boa noite! Encontro-me na presença do senhor T. e do senhor K. ? 
- Com certeza, menina! Sente-se! – Disse calorosamente o mais novo. Ana sentou-se ao lado de T. (o mais novo) situando-se na diagonal de K. (o mais velho). 
- Então… Diga lá… Portuguesa, não é assim? – Inquire com uma voz arrastada e descontraída (a tocar o ‘apática’) o senhor K.
- É verdade. – Mas este ‘é verdade’ ficou abafado quando os dois pareceram desaguar num diálogo privado. - Que achas de Portugal, T.?
- Não é mau… - O Manual dos Inquisidores, lembras-te? 
- Ah! Esse manual dos inquisidores… - Havia uma divergência de atitude, de energia, dir-se-ia, entre os dois. O jovem G, todo ateado, falava à medida do pensamento, como se tivesse aberto a cabeça e lhe estivéssemos a ouvir os pensamentos à medida que eles circulavam naturalmente pela elasticidade da sua eloquência, enquanto que K. era mais reservado, escolhia as palavras. De qualquer forma, para Ana, ambos surgiam como lunáticos, psicopatas destrambelhados, sim porque destrambelhado é um daqueles adjectivos que não são adaptáveis a qualquer pessoa, não! É preciso ter-se um aspecto especialmente sádico e uma veemência expurgada a dirigir-se para um recanto obscuro, desconhecido, para se conseguir ser simultaneamente encantador e repulsivo como aqueles dois.
- Ah! Esse manual dos inquisidores… e depois não era só esse invólucro de destempero sinistro, era a impassibilidade inerente aos dois homens que… 
- Nesse livro, a aglomeração caótica é o molde do excesso. – Continua K. …
a desprezavam? 
- Podem só dizer-me do que é que estão a falar? – Arriscou Ana, num tom de retraimento. 

Mas era inútil, o diálogo continuava, restrito e efusivo, “a queda em vez da ascensão, qual epopeia ao contrário” ouvia Ana, “o questionamento da capacidade de determinação colectiva ontológica”, ecoava-lhe algures nos subúrbios da consciência. Entretanto lembrou-se de um cartaz publicitário que viu uma vez numa paragem de metro em Barcelona com a imagem de Jesus Cristo a segurar um preservativo e uma frase em baixo que traduzida, significaria “É divino e chega-se na mesma ao céu”. Mas pior que isso - tinha-lhe contado um amigo - era a existência de expressões no calão espanhol de índole sacro-santa como Puta Madre! 
 - A aglomeração caótica desse livro é o molde do excesso. 
Uma pausa. 

- Não acha, menina? – K. dirige-se a Ana, que parece acordar do fundo de um filme expressionista alemão. 
- O que vai ser o jantar? – Pergunta Ana. 

Depois explicaram-lhe que tinham feito uma aplicação cinematográfica do livro de Lobo Antunes. Ana não sabia o que fazer ou dizer, não sabia que livro era, embora já tivesse ouvido falar do sujeito que era médio ou não sei quê. Ela só queria tratar de um contrato de uma forma normal. Que é chegar ali, até se pode falar um pouco do tempo, tudo bem, mas depois há que perguntar em que consiste a série, esboçar um storyline, avaliar a propensão que terá para uma eventual aplicação com êxito ao universo médio português. 
Pediram uma tal ‘grizé’ para o jantar. Ana ficou muito apreensiva, não sabia o que era aquela porcaria. E sim, parecia efectivamente uma porcaria. Pedaços de vegetais com um molho vermelhão por cima com cheiro a arroz queimado. Pelo sim, pelo não, o prudente «Eu não estou com muita fome.» fora aplicado.

- E então… de que trata a série? – Aventurou Ana. 

T. comia com imensa vontade e com um sorriso que parecia enterrado bruscamente na face mesmo enquanto mastigava ou abria a boca para inserir um pedaço de papa encarnada lá dentro. K. fumava cachimbo e olhava para as paredes. Agora para a lateral. O silêncio pousara-se por ali.

- Hummm… A série? 
- A série, menina, a série trata de uma jovem… 
Pausa. 

- Sim, uma jovem?...– Tentou arrancar Ana. – Uma jovem bonita que está apaixonada por um rapaz possuidor de músculos perfeitos que também gosta muito dela mas que namora com uma manipuladora asquerosa que impede a felicidade da protagonista?
T. e K. olharam um para o outro, em silêncio. 
- Não. - Retorquiu K. - Antes de mais deve saber uma coisa a respeito da nossa série…- Começou T. – Nós procuramos conjugar de forma inteligente as exigências do universo cultural mainstream com tendências artísticas experimentais. Sabe que o paraíso ainda não é possível para uma empresa que, como todas as outras, lida com números. 

Sim, ok, Ana estava declaradamente aborrecida. Mas que raio de paleio era aquele? Há protagonista ou não há protagonista? Há praia ou não há praia? Há gajos bons ou não há gajos bons? Perguntas simples. 

- Sim, claro, compreendo perfeitamente. – Respondeu Ana, erguendo o peito acreditando que assim ninguém repararia na sua falta de capital cultural. 
- Nós temos poucas informações acerca do vosso país, menina… Lidámos com aquele livro do senhor Antunes, mais nada! Repare, nós tentamos ser bons… - Continuou K.
- Pois, nós tentamos ser bons… - Reafirma T. -… E conciliar popularidade com isso. – Concluiu K.

K. não demorou muito a desmarcar-se com motivos de compromissos urgentes em outros lugares com outras pessoas. Ficaria, então, a conversa sobre a série para amanhã ao almoço. T. concordou.

Ana decidiu ir conhecer um pouco da vida nocturna do país. Procurou por alguma discoteca interessante mas a única coisa que encontrou foram umas escadas que davam para um bar enfiado numa cave com aspecto lúgubre, ou pelo menos estranho. Sentia-se ligeiramente desconfortável pelo facto de ser uma desconhecida naquela espécie de cidade-país. Eram todos muito diferentes dela. Não identificou nenhuma marca de nenhum estilista em peça de roupa nenhuma. Todos extravagantes, todos estranhos. Drogar-se-iam? Se não se drogavam pelo menos era esquisito que não reparassem minimamente na sua presença. Afinal ela trazia uma Camisa em chiffon com fitas de seda, Alessandro Dell Acqua e Calças de smoking Gianfranco Ferré. “Bando de anormais, estes Gronenses”, pensou consigo mesma. “Pelo menos um gajo a olhar-me para o rabo, era pedir muito?”

Entretanto naquele bar todos se pareciam conhecer, ou se não se conheciam havia uma espécie de falta de complexo colectivo, não havia anormalidade nenhuma em trocar ideias com alguém mesmo antes de lhe saber o nome, senão não debatiam coisas tão estranhas e tão… 

- Estamos de acordo até certo ponto. – Diz a personagem A. - Ao esboçar criticamente a completa ausência de união e empatia entre os representantes de uma classe marginalizada, constatando friamente a improvável formação de uma "classe por si" que possa fazer frente ao poder do Capital, chamou a atenção da crítica especializada, deu que falar, e isso é que importa. 

Falavam de uma peça de teatro brasileira.

- Pronto, mas o que ele deixa patente são apenas possíveis discussões ou acepções sobre as questões sócio-culturais em que vive, repete o que fazem todos os outros dramaturgos da sua época. Nada de novo! – Responde a personagem B. 
- Seja como for, a peça foi importante para delinear o mal-estar que se fazia presente nas relações autoritárias entre indivíduos que, de certa forma, sofriam dos mesmos males. – Comenta a personagem C., lá ao fundo.
- Sim, o gajo tem jeito para foder Os Senhores Lá De Cima, tem! – Afirma, já com alguns sinais de inebriamento, a personagem D. 
- Não, não julgo que se repita como tu disseste, B. - prossegue A. – a peça consegue ir mais além, infiltrar a realidade humana, reflectir acerca das repercussões do Sonho Americano do ponto de vista dos distúrbios não só sociais como emocionais. Vê-se que o autor quer contornar o estereótipo reproduzido pelos intelectuais do seu tempo que insistem em retratar – neste momento A. simula uma voz fininha, satírica – o-ingénuo-sujeito-cuja-alienação-advém-unicamente-dos-mecanismos-intrínsecos-à- sociedade-capitalista, oh, coitadinho! 
- Estão a falar do quê? – Inquire a personagem E., acabada de chegar. 
- A peça Dois Perdidos Numa Noite Suja. – Responde B. 
- Ah, sim, aquela em que dois homens dividem um desolado quarto de pensão e vivem um intenso conflito de valores, etc… 
- Isso. – Confirma C. 
- Quem é que a escreveu, mesmo? – Interroga E.
 - Não faço ideia. – Responde A. 
- Também não me lembro… - Admite B.
- Ai, eu sabia, espera aí… Ai… Não me recordo… - Declara C. 

Ainda não era meia-noite quando Ana saiu do bar. Sentia mesmo uma indisposição vinda do abdómen. Talvez devido à papa vermelha, ou talvez porque esta existência individual que parecia brotar a cada expiração dos habitantes de Gronos era deveras perturbadora. Todos com opiniões tão próprias sobre coisas em que ninguém pensa. Na verdade pensar, naquele momento, era algo que lhe custava. Dirigiu-se para o hotel com alguma dificuldade. 
No dia seguinte acordou alguns minutos antes do almoço marcado com T. e K. Produziu-se, claro. Mas não se produziu muito. Chegou à conclusão que gastar cosmético com Gronenses não era algo muito inteligente. 
Novamente no restaurante já seu conhecido, Ana sentou-se na mesa, ainda vazia, onde estivera na noite passada com T. e K. Não demoraram muito a chegar. Ana não reparou na roupa deles a não ser no estranho relógio que T. trazia e que possuía a forma de um porquinho prateado. Para o almoço, mandaram vir Grozoo que se assemelhava ao Grizé mas desta vez era verde. Ana foi directa ao assunto. Precisava mesmo de compreender do que tratava a série para poder comunicar à empresa, para avaliar probabilidades de sucesso, para se consumar (ou não) a compra dos direitos para readaptação. 

- Bom, como já tínhamos indicado, a série é protagonizada por uma personagem feminina. – Começou T. - Todo o universo interior dessa personagem é relatada ao publico numa sucessão e alternância de analepses e prolepses que de certa forma ajudam a fragmentar a narrativa comum, criando focos de pressão específicos na leitura do enredo. Compreende? 
- A particularidade e o interesse do universo da personagem residem no questionamento que ela faz ininterruptamente da realidade… - Continuou K. 
- Muitos dos intervenientes da acção surgem de uma forma efémera, mas cumprem o seu objectivo… Por exemplo, um episódio que fez muito sucesso foi aquele, lembra-se K.?, em que a protagonista descobre que o cheiro a alfazema e incensos que provém da casa do vizinho de cima são uma forma de amenizar o estado de putrefacção do seu corpo, porque ele no fundo estava morto. Depois de algumas conjunturas conclui-se que é a Vontade que o mantém vivo para lá das limitações humanas. Há ainda uns rasgos do mundo da doutrina Thelema e um cheirinho a hedonismo de Crowley. Tudo explorado como bisbilhotice intelectual. Não andamos a impingir teorias a ninguém, eh eh! 
- É, enfim, tentámos explorar assuntos polémicos pelos quais toda a gente sente uma certa curiosidade…

Ana, nitidamente perturbada, interrompe K. e solta alguns desabafos. 

- Não é isso que eu considero propriamente uma série para entreter e para se passar o tempo! Passar o tempo! Diversão! Isso que vocês descrevem tem mais ares daquelas séries de culto que ajudam a formar psicopatas do que de uma coisa para divertir! Vocês neste país são completamente doidos! Falam todos de coisas esquisitas, em que nenhuma pessoa normal perde tempo a pensar! Falam de espectáculos ou de livros, como se isso realmente vos afectasse a vida! É ridículo! As pessoas normais não são assim! E depois são capazes de estar a debater ideias sem saber quem as criou, como se elas se tivessem desatado do criador! Que estupidez! Olhem, sabem que mais? Deixem lá o contrato… não é preciso grandes estudos analíticos para perceber que uma série dessas no meu país, para ter algum sucesso, seria necessário começarmos a viver uma realidade utópica! Com licença! 

Ana pega na sua mala Alexander McQueen e sai disparada do restaurante. Lá dentro, K. dirige-se a T. quando diz: 

- Coitado do Senhor Antunes… 

SARA F.COSTA
(Menção honrosa Categoria B Prémio Utopia para Conto Literário)
2004

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